segunda-feira, 29 de março de 2010

Exemplo: A nova arte popular pernambucana


Jornal do Commercio
Publicado em 28.03.2010


Artesãos do Agreste driblam a falta de apoio e reconhecimento e conquistam colecionadores e espaço no mercado de ambientação
Bruno Albertim
balbertim@jc.com.br

GARANHUNS – Nos anos 1940, Vitalino mercava tranquilamente seus bois e utensílios na Feira de Caruaru. Objetos corriqueiros, usados em casa ou até como brinquedos. Ao fim daquela década, depois da grande 1ª Exposição de cerâmica pernambucana, organizada pelo desenhista Augusto Rodrigues no Rio de Janeiro, as peças do mestre e de seus pares começaram a cruzar fronteiras. Conquistaram críticos, colecionadores e ajudaram a flexibilizar a barreira entre as artes erudita e popular. Um de seus bois está hoje no Louvre. Até Picasso chegou a expor um boi de Vitalino ao lado de um quadro seu. Entusiasmado, disse que tinham a mesma importância. Muitos anos depois, uma nova escola se configura no universo do artesanato e da arte popular pernambucana.

Não se sabe se essa nova produção terá lugar no panteão restritivo dos grandes criadores. Mas o fato é que, autodidatas ou incentivados por artistas urbanos, designers e estetas, novos artesãos saem do anonimato e são descobertos por colecionadores e pelo mercado de ambientação. Moradores de sítios sem CEP definido ou ônibus na porta, novos severinos, luizas e josés começam a ganhar identidade com suas obras. “Já trabalhava com artesanato da África, da Indonésia e me encantei com a produção de gente praticamente desconhecida e autodidata. Eles têm muita força para entrar no mercado de ambientação”, opina o decorador Marcos Machado, que representa especificamente no Recife grupo de artesãos de Garanhuns.

Para que esses artistas cheguem ao grande público, há quase sempre a presença de uma pessoa ou instituição dispostos a ensiná-los o caminho do mercado. Justamente em Garanhuns, a pequena comunidade de novos artesãos só começou a abandonar o anonimato após a advogada Ielma Lucena decidir aproveitar o tempo livre ganho com a aposentadoria para se dedicar a eles. Transformou sua própria residência na Galeria Mãos da Terra. Direta ou indiretamente, quase uma dezena de mestres estão ligados a ela.

Sua casa é uma profusão de peças, a maior parte de grandes dimensões, invadindo cômodos e jardins. Uma rotina nem sempre tão bonita quanto a arte que encerra. “Pela falta de apoios oficiais, já que nem sempre os órgãos percebem o potencial turístico e cultural que esses artistas representam, muitas vezes dá vontade de desistir. Tenho mantido com recursos próprios artesãos trabalhando constantemente. Fico triste quando preciso dispensar um deles”, diz ela, que amarga uma perda recente.

Dono de uma perícia impressionante para trabalhar a madeira, o artesão conhecido como Seu João dos Mamulengos largou o elenco da galeria. Cansado de esperar pelo retorno financeiro na venda das peças, migrou para São Paulo. “Foi trabalhar como pedreiro”, diz. Na galeria, repousam as últimas toras delicadamente transformadas em cabras enormes.

A maior parte dos artesãos, felizmente, encontrou na criação a profissionalização possível. É o caso do versátil Serginho de Garanhuns, 28. Depois de ter encarado toda a sorte de bicos para livrar a família da fome, ele se mudou de um sítio distante para a cidade e hoje dá expediente como artesão.

Suas mãos convertem agilmente toras de árvores mortas em santas de até quase dois metros, traços elementares e icônicos como os de ex-votos. “São peças muito expressivas”, elogia o médico e arquiteto Lúcio Omena, colecionador que tem usado obras do artista no desenho de ambientes. Para dar um certo acabamento aos objetos, Serginho muitas vezes talha um Sagrado Coração de Jesus no corpo das esculturas. Polivalente, executa também animais, figuras humanas e utilitários como o banco em forma de lobo-guará que vem se tornando sua marca registrada. “Vejo as coisas no mundo e vou fazendo”, diz ele.

Sua grande influência, naturalmente, é o pai. Conhecido como Mestre Valdecir da Silva, este senhor de 66 anos vive ainda meio isolado num sítio em Canhotinho. Seu trabalho consiste em grandes peças figurativas de madeira, quase sempre homens de paletó cujo acabamento lembra ex-votos totêmicos. Adeptos de grandes peças, aliás, são uma constante na região. Um dos mais respeitados é Valfrido de Oliveira César, o Mestre Fida.

Ele constrói esculturas articuladas chamadas de homens-cata-vento, comercializadas pela Mãos da Terra. Os braços são grandes pás sensíveis à ação do vento. “Quando eu era pequeno, vi um parecido. Todo mundo se entusiasmava com aquilo. Pensei: quando for grande, vou fazer”, diz Mestre Fida. Na virada do milênio, um grande barco de seis metros com cinco esculturas dele dentro integrou uma mostra em São Paulo sobre os 500 anos do Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário